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JORGE PAIVA

CENTRE FOR FUNCTIONAL ECOLOGY - SCIENCE FOR PEOPLE & THE PLANET. UNIVERSITY OF COIMBRA

OS INCÊNDIOS E A DESERTIFICAÇÃO

DO PORTUGAL FLORESTAL

Fotografia APNCT | Ciclo de Palestras "As Áreas Classificadas e a Protecção da Biodiversidade"

Palestra inaugural pelo Professor Doutor Jorge Paiva “A relevância da Biodiversidade” | 24 de Maio de 2016 | Auditório do Convento de São Francisco, Trancoso

O povo que habitava primitivamente a Lusitânia, vivia da floresta que lhes fornecia caça, peixe, frutas, farinha de bolota para o pão (não conhecia o trigo), castanha (substituída pela batata após os Descobrimentos) e verduras (veiças). É disto testemunho, o que Estrabão refere ao descrever o povo que os fenícios encontraram (primeira idade do Ferro) neste extremo ocidental europeu (“...três quartas partes do ano alimentam-se sempre com bolotas secas, partidas e esmagadas, com as quais fazem um pão que se conserva muito tempo. Uma espécie de cerveja é a sua bebida ordinária...”). São também testemunho disto, os pães de castanha ou pão dos bosques, a “bola sovada” (falacha) e “pratos relíquias” à base de castanha, como o paparote ou caldulo que ainda se comem em algumas regiões beirãs, e, ainda, alguma “actividade social” baseada na castanha, como, os magustos, estando as brechas (apanha prévia, pela garotada) e os rebuscos (apanha das sobras pelos aldeões de fracos recursos) praticamente em desuso.

Quando o homem inicia o cultivo de cereais (trigo e cevada) e a domesticação de animais (cabra, ovelha e porco) há cerca de 8-7 mil anos, inicia-se a degradação da floresta. Uma parte das montanhas do norte do país, como, por exemplo, a serra de Castro Laboreiro, talvez já estivesse com a floresta muito degradada no início da nossa nacionalidade. A riqueza arqueológica dessa região (mamoas, castros, etc.) assim o comprova. Essa degradação continuou depois com a pastorícia e agricultura rural até aos nossos dias, de que as brandas, inverneiras, vezeiras, socalcos e prados-de-lima são ainda o testemunho desse património cultural a preservar.

Por outro lado, os Descobrimentos e respectiva Expansão tiveram grande impacte na devastação das formações florestais do nosso país. A investigação histórica florestal sobre as orientações da evolução dos ecossistemas florestais que acompanharam os rumos da política económica em distintas épocas, confirmam que os Descobrimentos tiveram uma grande responsabilidade na exploração e declínio das florestas europeias e, evidentemente, também das de Portugal.

 

Fotografia Rui Figueiredo | Serra do Pisco vista a partir da povoação de Alcudra (Concelho de Trancoso)

Inicialmente, para a construção naval, foi utilizada madeira de azinheira (Quercus ilex subsp. ballota = Q. rotundifolia) e de sobreiro (Quercus suber), pela abundância destas árvores nas proximidades dos estaleiros da capital. Porém, devido à utilidade destas duas espécies de carvalhos, fornecedores, respectivamente, de bolota comestível e cortiça, foi proibido o abate destas duas preciosas e úteis espécies de árvores, tendo sido substituídas pelo carvalho-alvarinho (Quercus robur), o carvalho de maior porte que temos [para cada nau eram necessários entre dois mil a quatro mil carvalhos]. Outras madeiras utilizadas, mas em menor quantidade, portanto, com fraco impacte ambiental, foram o pinho (Pinus pinaster) para a mastreação e vigamento e o castanho (Castanea sativa) para o mobiliário. Só para a “Campanha de Ceuta” foram necessárias 200-300 naus e durante a Expansão dos Descobrimentos, para a Índia construíram-se 700-800 naus e para o Brasil cerca de 500. Portanto, durante essa época derrubaram-se mais de 5 milhões de carvalhos. Foi assim que se desflorestou grande parte do país, tendo desaparecido muitos dos nossos riquíssimos carvalhais, plenos de Biodiversidade. O declínio não foi apenas de plantas. O urso, por exemplo, extinguiu-se, nessa época, em Portugal.

Como se referiu, para as naus foi usado, fundamentalmente, madeiramento de carvalho-alvarinho (Quercus robur). Mais tarde, para a construção da rede de caminho-de-ferro, foram derrotadas as florestas onde predominava o carvalho-negral (Quercus pyrenaica), cuja madeira servia para fabrico das travessas das vias férreas.

Assim, as montanhas, particularmente as da região entre o Douro e o Tejo, foram praticamente desarborizadas e, portanto, erodidas, tendo sido o respectivo solo arrastado, assoreando os rios. O Mondego, por exemplo, assoreou de tal modo e tão rapidamente, que as freiras do Convento de Santa-Clara-a-Velha, que ali se instalaram no início do século XIV, três séculos depois (1677), isto é, após o auge da Expansão, tiveram que o abandonar, devido ao assoreamento do rio Mondego. Actualmente, em frente a Coimbra, o rio tem 30-40 metros de altura de areia.

Com as montanhas desarborizadas, a população passou a viver do pastoreio. A pastorícia intensiva também teve grande impacto na destruição da flora portuguesa, utilizando gados nacionais, mas também espanhóis na época medieval. A transumância dos rebanhos das planícies para a montanha no verão e vice-versa no inverno, só decaiu grandemente durante o século XX. Os rebanhos vindos de regiões que rodeavam as nossas serras, juntavam-se aos serranos, agrupando-se os animais em rebanhos de 1-3 mil ou mais cabeças de gado, à guarda de pastores serranos. A quantidade de animais que pastava nas serras era muito elevada, degradando os ecossistemas florísticos da montanha, com a consequente erosão dos solos.

Os fogos e a prática das queimadas nas regiões agrícolas e também nas regiões de pastoreio, foram outro factor que contribuíu e continua a contribuir para a desertificação das nossas montanhas.

As referências de fogos em Portugal podem remontar-se, pelo menos, aos fins do século XII, e os seus nefastos efeitos operaram uma modificação quase integral na cobertura vegetal de Portugal, e o consequente assoreamento de uma grande parte dos nossos rios.

 

A destruição foi tal que os ecossistemas florestais portugueses, de que ainda possuímos algumas relíquias muito degradadas, foram sendo substituídos por urzais (Erica spp. e Calluna vulgaris), giestais (Cytisus spp.) e tojais (Ulex spp.) ou formações naturais mistas de urzes, giestas, tojo e carqueja (Pterospartum tridentatum), vulgarmente conhecidos pela designação genérica de matos.

Fotografia Rui Figueiredo |  Estrada que liga a povoação de Venda do Cepo aos Montes e Boco (Trancoso)

A partir de certa altura, essas áreas de mato foram rearborizadas com o pinheiro bravo (Pinus pinaster). O primeiro Regimento de Reflorestação que conhecemos são as leis publicadas em 1495 e integradas nas Ordenações Manuelinas. Com a conhecida Lei das Árvores de 1565, que constitui uma política de promoção de rearborização nos baldios ou propriedades privadas de todos os municípios, dá-se o incremento do pinhal.

Esta lei realça a prioridade das resinosas, o que constitui um marco importante na história florestal do nosso país, tendo-se dado, portanto, o início da difusão dos pinheiros pelas montanhas portuguesas e, praticamente, por todo o território. Mas a lei, além dos pinheiros, menciona também castanheiros e carvalhos e “outras quaisquer árvores”. Já nessa altura se indicavam as folhosas para as arborizações, e não apenas resinosas. Aliás, era obrigatória a utilização de folhosas, mas, infelizmente, também já nessa altura, não se cumpriam as leis. Muitos municípios não cumpriram a lei alegando desconhecimento da mesma ou alegando que os castanheiros, figueiras, carvalhos, amoreiras, etc. não tinham pegado “por a terra ser tão fria”, o que é realmente estranho num país onde aquelas espécies nascem e crescem naturalmente. Semeou-se pinheiro bravo e pinheiro manso (Pinus pinea), conhecendo-se a composição florística das matas nessa época, diferenciando-se em vários pinhais, quer de pinheiro manso, quer de bravo.

O pinheiro bravo ecologicamente é uma árvore bem adaptada aos ambientes de Portugal atlântico. Sendo uma resinosa de crescimento mais rápido que o carvalho, foi semeada com maior profusão do que o pinheiro manso e do que as folhosas, tendo ampliado extraordinariamente a respectiva área, particularmente depois da criação dos “Serviços Florestais” e da política de arborização do “Estado Novo”, tendo-se criado em Portugal a maior área de pinhal contínuo da Europa.

As nossas montanhas transformaram-se então num imenso pinhal, outrora cobertas fundamentalmente por carvalhais caducifólios.

O povo que vivera da floresta primitiva (caça, bolota, castanha, etc.), após a destruição desta, passou a viver dos matos (pastorícia), modificando novamento os seus hábitos passando, seguidamente, a viver do pinhal, que lhe dava madeira, lenha, resina, e muitos objectos manufacturados artesanalmente, como colheres, garfos e até facas.

Para sul do Tejo, apesar de se terem devastado muitos sobreirais e quase todos os montados de azinho, particularmente após a célebre campanha do trigo, o pinhal, quer de pinheiro bravo quer de manso, nunca teve grande implantação.

A partir de meados do século passado (XX) os pinhais têm vindo a ser substituído por eucaliptais, particularmente de Eucalyptus globulus. Os eucaliptos interessam mais às celuloses por serem árvores de crescimento mais rápido do que os pinheiros. Nas últimas décadas incrementaram-se tão desenfreadamente as plantações de eucaliptos que se criou em Portugal a maior área de eucaliptal contínuo da Europa.

Com as montanhas ocupadas por eucaliptais, deu-se o êxodo rural pois, como os eucaliptos são cortados periodicamente de dez em dez anos, o povo não fica dez anos a olhar para as árvores em crescimento, sem ter mais nada que fazer. Isto porque os eucaliptais não dão para mais nada a não ser madeira para as celuloses, pois além de não terem praticamente mato útil, não podem ser cortados para lenha nem fornecem boa madeira para construção ou mobiliário. Assim, o povo além do abandono rural a que foi “forçado”, ficou ainda numa dependência económica monopolista, um risco para o qual não é, nem nunca foi, alertado.

Como é do conhecimento geral, a partir de 1975 aumentaram espectacularmente os fogos florestais em Portugal, constituindo um verdadeiro escândalo nacional a destruição não só da nossa vasta área de pinhal, como de algumas relíquias florestais e até de zonas agrícolas. Na nossa opinião, a delapidação técnica e humana dos Serviços Florestais, operada pelos sucessivos governos após a “Revolução dos cravos” (25. IV. 1974) e a desumanização do meio rural, são as principais causas desta situação.

Como consequência da devastação do pinhal, como também foi referido, tem-se vindo a assistir a um aumento sistemático da área ocupada por eucaliptos e acácias ou mimosas, estas últimas por serem invasoras bem adaptadas a zonas incendiadas e os eucaliptos por serem plantados indiscriminadamente devido ao seu presente valor económico.

Apesar disso, os carvalhais e os montados de sobro e de azinho ocupam ainda quase um milhão de hectares em Portugal, sendo necessário, no entanto, para a defesa, manutenção e aumento dessa área, que haja uma radical modificação nas políticas agrícola e agroflorestal do nosso país.

Não se pode continuar apenas com explorações agroflorestais e agrícolas monoespecíficas. Não só porque são explorações que provocam baixas drásticas na Biodiversidade, como também são formações de elevada homogeneidade genética. Tal homogeneidade conduz a um empobrecimento dos genes disponíveis e não permite o melhoramento e selecção das espécies que ficam, assim, com menor aptidão para a sobrevivência. Isso implica maiores riscos de catástrofes, como incêndios mais devastadores e maior facilidade de propagação de epidemias.

Com ou sem eucaliptos e acácias, a continuar a onda de incêndios dos últimos anos, as nossas montanhas caminham vertiginosamente para a desertificação com o consequente aumento do assoreamento dos rios. Aliás, muitas das nossas montanhas são, actualmente, autênticas zonas desérticas, pois até as já referidas formações secundárias de tojo, giestas, urzes e carquejas, que ainda “seguravam” o resto de solo empobrecido, têm sido devastadas pelos incêndios.

Fotografias Rui Figueiredo | Vale da Ribeira da Muxagata (que dá para Aldeia Nova, Trancoso)

Outra consequência do desmembramento dos Serviços Florestais é a diminuição da área arborizada de ano para ano, por não terem pessoal e verbas para rearborizar ou apoiar a plantio por particulares das áreas ardidas. Desde 1974, são destruídos por incêndios e exploração industrial, em média anual, cerca de 50-65 mil hectares (valor muito ultrapassado em 2003, em que arderam mais de 400 mil hectares) e são arborizados apenas cerca de 15-20 mil hectares. Há, pois, em média, um défice anual de 30-50 mil hectares. Assim, todos os anos assistimos a uma diminuição contínua da área arborizada do país. Só os nossos governantes é que não querem ver. Por outro lado, temos que legislar no sentido de obrigar a plantar um número igual ou superior ao das árvores abatidas para comercialização, tal como o fazem alguns países europeus (ex.: Finlândia e Suíça). Enquanto não se re-estruturarem convenientemente os Serviços Florestais e não se investir ns prevenção e não apenas no combate, continuaremos a caminhar para a desertificação.

Além disso, devido ao actual “Aquecimento Global”, Portugal está a ter verões mais quentes, mais secos e de maior amplitude. Ora, as únicas árvores que temos, capazes de suportarem estas novas condições, são, precisamente, os sobreiros e as azinheiras.

É, pois, necessário repensar a floresta de produção e ordenar o país. Mas isto levará muitos anos, pois sobreiros e azinheiras são árvores de crescimento lento e o ordenamento do território é muito trabalhoso e demorado. Porém, isso já foi feito no Ribatejo e Alentejo. Os montados de sobro e de azinho demoraram dezenas de anos a formarem-se, mas hoje são rendíveis e sempre com o mesmo número de árvores pois, conforme vão morrendo, vão sendo substituídas por outras.

Se os nossos governantes continuarem, teimosamente, a não querer ver o que está a acontecer, caminharemos rapidamente para um amplo deserto de pedras montanhoso, com a planície e o litoral transformado num imenso acacial, como, aliás já acontece em muitas regiões de Portugal.

Fotografia APNCT | Ciclo de Palestras "As Áreas Classificadas e a Protecção da Biodiversidade"
Palestra inaugural pelo Professor Doutor Jorge Paiva “A relevância da Biodiversidade” | 24 de Maio de 2016 | Auditório do Convento de São Francisco, Trancoso

Jorge Américo Rodrigues de Paiva, nascido em Cambondo, Angola, a 17 de setembro de 1933, é formado em Ciências Biológicas pela Universidade de Coimbra e Doutorado em Biologia pelo Departamento de Recursos Naturais e Meio Ambiente da Universidade de Vigo (Espanha). Foi investigador principal no Departamento de Botânica da Universidade de Coimbra, onde ensinou algumas disciplinas, dando palestras como professor convidado em diversas universidades por todo o mundo.

Como investigador do Instituto Nacional de Pesquisa Científica (INIC), trabalhou por três anos em Londres, nos Jardins Kew e na Secção de História Natural do Museu Britânico. Como fitotaxonomista, percorreu a Europa, particularmente a Península Ibérica, as Ilhas Macaronésias, África, América do Sul e Ásia, tendo também visitado a Austrália.Pertenceu à Comissão Editorial da Flora Ibérica (Portugal e Espanha), Flora de Cabo Verde e Conspectus Florae Angolensis, bem como de algumas revistas científicas. Foi colaborador (no estudo de alguns grupos de plantas superiores) de várias floras africanas, como a Flora Zambesiaca (Moçambique, Malawi, Zimbábue, Zâmbia e Botswana), Flora da África Oriental Tropical (Quénia, Tanzânia e Uganda), Flore du Gabon e Flore du Cameroun. Integrou ainda vários grupos internacionais de investigadores em estudos e colecções de campo, não só na Península Ibérica, mas também em países africanos (Moçambique, Quénia, Seychelles, Tanzânia, Zimbábue, Angola, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe), asiáticos (Timor, Tailândia e Vietname) e americanos (Brasil e Paraguai). 

Como ambientalista, é conhecido pela sua intransigente defesa do Meio Ambiente, sendo um membro activo de várias Associações e Comissões nacionais e estrangeiras. A sua actividade em defesa do meio ambiente foi distinguida em 1993 com o Prémio “Nacional” da Quercus (Associação Nacional para a Conservação da Natureza); Em 2005, com o Prémio “Carreira” da Confederação Nacional das Associações de Defesa Ambiental; Em 2005, com o Prémio “Amigos da Prosepe” da Prosepe (Projeto para Sensibilizar a População Escolar); Em 2001 e 2002, com as menções honrosas dos respectivos Prémios Nacionais de Meio Ambiente “Fernando Pereira” conferidos pela Confederação Nacional das Associações de Defesa do Meio Ambiente.

Em dezembro de 2013, foi homenageado pela Universidade de Coimbra pela sua actividade como cientista, professor e divulgador de ciências, com uma sessão solene no Auditório da Reitoria, intitulada “Uma vida dedicada à Botânica” e a inauguração do “Sala da Cultura Científica Jorge Paiva”, no Jardim Botânico da Universidade de Coimbra; Em maio de 2014, pela Santa Casa da Misericórdia de Arganil com a inauguração do Largo Jorge Paiva no Parque adjacente ao edifício; Em novembro de 2014, pela Ciência Viva (Agência Nacional de Cultura Científica e Tecnológica) com o Grande Prémio de Ciência Viva 2014.

Publicou mais de quinhentos artigos sobre fitotaxonomia, palinologia e meio ambiente. 

fonte: cfe.uc.pt

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